Oi, filha





                                                                                                    Barcelona, 22 de Abril e 2006


Oi, filha.

Mari, desculpa responder tua carta só agora, depois de tanto tempo. A mãe aqui ta trabalhando muito e está tudo tão estressante com a turnê... Mas enfim, consegui ler o seu último post no blog e confesso que não acreditava que você pudesse escrever coisas tão sensíveis e tocantes. Tão jovem e tão sábia! Realmente tenho muito orgulho da filha que criei e aposto que seu pai também acha isso.

Então Mari, seu avó me ligou e comentou que você perguntou a versão dele de como eu conheci seu pai e por quê ele foi embora. Talvez seja a hora de você saber da minha versão. Não garanto que seja uma historia 100% feliz, mas é uma boa história.

Eu era um pouco mais velha do que você é agora quando conheci o JP - esse era o apelido do seu pai; eu namorava outro rapaz quando nos conhecemos e por algum motivo teu pai me chamou atenção. Naquela época haviam jovens muito mais interessantes do que hoje em dia. Eu era uma menina muito comum sabe, tão rasa, só ouvia Roberto Carlos e aquela tal de Jovem Guarda...Mas o João vivia ouvindo Joplin, Hendrix, lendo Tolstoi, Orwell e até Jane Austen. Totalmente diferente dos rapazes com quem eu saía e foi isso que me cativou. Não era um moço bonito, nem popular, nem muito talentoso. Ele era como o George Harrison, sabe? Não era gênio incompreendido como Lennon, nem o Sr. Bom Moço igual ao Paul, muito menos o loser tipo Ringo. Ele só tinha aquele ar de mistério inofensivo, carinhoso e sensível do George. Certeza que você puxou isso dele.

Até hoje não sei o que ele viu em mim naquela época, mas acabamos namorando. Aprendi tanta coisa com ele, Mari. Ele me sofisticou, me ensinou a ter senso crítico sobre as coisas. Teus avós o adoravam! Achavam que ele era o melhor marido que eu poderia querer - nunca souberam que aprendi com ele a fumar maconha! Mas estavam certos. Entre namoro e o nosso casamento passaram 4 anos. Anos que me fizeram tão bem! Foi ele que me ensinou e mostrou tanta coisa nova. Coisas que nunca teria contato se continuasse a ser aquela moça comum, burguesa e que só saia com 'meninos'.

Logo depois do casamento você nasceu. Mari, tu não tem idéia do quanto teu pai te babava. O quanto ele era louco por você. Ele te colocava pra dormir toda noite cantando Strawberry Fields Forever...Como eu o amava por isso. Nunca tinha visto ele tão feliz quanto na sua festinha de 1 ano! Fomos muito felizes! Tinha uma boa família, eu já trabalhava no Ministério da Cultura e ele se esforçava pra se adequar ao trabalhabo chato no escritório do seu avô. Lembra dos almoços de domingo de ele preparava?

Porém Mari, teu pai era um espírito livre. Sei que ele não tinha outras mulheres enquanto estava comigo, mas não sei dizer exatamente o momento em que ele deixou de me amar. Acredito que só aconteceu o que sempre acontece: a vida. É difícil aprisionar os que tem asas. Da ultima vez que conversei contigo sobre a separação você disse coisas horríveis sobre ele, coisas que não são verdades. Ele te amava muito, muito, Mari. Ele pediu pra te levar quando foi morar em Brasília e claro que não deixei. Estava muito abalada, sem entender por que tinha sido abandonada sem motivo algum com uma filha de 5 anos; pensando exatamente como você pensa hoje. Continuei o amando mesmo depois que me deixou e amo até hoje. E admita que ele nunca te deixou na mão ou foi um pai ausente, apesar da distância.

Hoje entendo que a gente pode sim, do nada, não querer mais o que se tem. E que pessoas não são feitas para ser anexadas a outras. Foi por isso que te emancipei quando  fizeste 16. Por que eu quero que sejas livre, assim como seu pai foi, que caminhe com as próprias pernas mas sabendo de tens a mim e a teus avós como porto seguro. Essa foi a principal lição que tirei do João. Seja livre pra ser a pessoa de bem que és. Pessoas não possuem nem prendem pessoas.

Hoje, quase 2 anos depois que jogamos as cinzas dele na lagoa, queria que você apagasse qualquer mágoa que ainda houver no seu coração. Seu pai foi a melhor coisa que me aconteceu.


Nos vemos no Natal,

Beijos da mãe.




p.s. sua namorada é linda!!

Pra moça que não sabe ser Mulher






* meus queridos, imaginem um senhor de 87 anos enviando uma carta pra sua neta de 19.


                                 Recife, 2012

Cara Joana,


Depois de nossa conversa concluí: Toda mulher devia ser feminista. 'Feminista' no melhor sentido da palavra.

Toda menina devia estudar a história do feminismo. Dos conceitos de Sagrado Feminino dos povos pagãos até a revolução das minisaias. Devia buscar esse tipo de conhecimento essencial para todo o processo de emancipação da mulher no século XX. Simone de Beauvoir dizia que não se nasce mulher: torna-se uma. Torna-se a partir da percepção de qual lugar você vai tomar na sociedade patriarcal/machista que ainda vivemos.

Veja bem, estou te falando isso não é pra te tornar uma Nazi Feminista, muito menos um macho com ovários. Também não estou te pedindo pra ser aquela mulherzinha rasa e monocromática que só entende de coisas de mulher. Eu estou te pedindo pra honrar as tuas predecessoras e encarar a vida de forma mais corajosa. Sem tanto melodrama, sem choramingar tanto por motivos tão tolos. Você cresceu, uma mulher adulta, comporte-se como tal. Comece parando com esta vaidade imensa. Seja sim vaidosa, mas na medida certa, sem deixar que isso sobreponha sua personalidade ou que chegue ao ponto de ser a única coisa que vemos em você.

Feministas vão dizer que você não tem que ser bonita, que você não deve beleza a ninguém. Nem ao seu namorado, esposo ou companheiro, nem para seus amigos de trabalho, muito menos a qualquer rapaz aleatório na rua. Você não deve isso pra sua mãe, você não deve isso pra seus parentes nem pra sociedade em geral. Beleza não é um aluguel que você paga por ocupar um espaço marcado como 'fêmea'.

Eu, um homem, defendo isto e sei do teu preconceito com essa coisa de feminismo. Levou tempo até eu entender que o feminismo, mesmo o mais radical, não está enraizado no desprezo pelos homens, mas sim na fé que eles são seres humanos. Se um dia eu tiver um bisneto, quero que ele seja uma pessoa decente num mundo em que a decência é a norma, assim como os direitos iguais de gêneros. Não quero que seu filho seja um homem. Quero que seja um ser humano e isso implica no respeito pelo próximo de forma incondicional. Ele chegaria a este mundo como um ser humano. Ele merece a chance de manter essa humanidade, como todos nós. E se não encontrarmos uma forma de permitir que nossos meninos façam isso, temo que nossas meninas não tenham mesmo chance.

E se a única coisa que você lê são os fragmentos de Caio Fernando Abreu soltos por aí, tenta pelo menos ser como a Harriet dele:

"Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor."



Abraços do vovô Euclides.